Páginas

quinta-feira, 6 de junho de 2013

PALAVRAS PRONUNCIADAS SOBRE A TUMBA DE P. P. DIDIER No dia 8 de dezembro de 1865

Senhores,

Os parentes e amigos daquele cujo despojo mortal jaz agora aos nossos pés, me pediram para concluir esta dolorosa cerimônia com algumas palavras. Não me sentiria autorizado a aceitar este convite, se não soubesse que vem do fundo do coração e se, desde alguns anos , não fosse objeto de uma afeição especial da parte deste homem respeitável.  Por uma coincidência que me entristece, tanto quanto me impressiona, meu nome foi uma das últimas palavras que saíram de seus lábios; sendo o mais jovem dos autores cujas obras ele publicou, imagino que essa juventude fosse um dos motivos dessas simpatias, e é, sobretudo, a esse título, que pronuncio o adeus que todos lhe dão hoje.

Antes que a terra se feche para sempre sobre aquele que uma mão misteriosa acaba, de repente, de banir do banquete da vida, vou, pois, intérprete dos sentimentos de todos, deixar cair sobre essa cabeça adormecida um testemunho de estima, partilhado por todos aqueles que o conheceram disso estou certo.
Não falarei aqui do homem privado. Meu único dever e meu único direito, é mostrar aos primeiros escalões do comércio livreiro contemporâneo um editor íntegro, honrado, religioso mesmo, colocando acima de todo o interesse o sentimento do bem, do belo e do verdadeiro; desprezando as riquezas cuja origem é duvidosa, preferindo às publicações escandalosas as obras que enriquecem que instruem o espírito e enobrecem o coração; - um editor, finalmente, que nunca aceitou um livro materialista, desonesto ou perigoso, por mais produtivo que tivesse sido em outra parte; que desejou, constantemente sentir sob essas obras o sentido espiritualista que as enobrece; e que desde quarenta anos que se dedicou a esta tarefa, não imprimiu uma única obra que lhe pudesse hoje censurar à sua consciência, e que uma mão ultrajante pudesse lançar sobre esse ataúde para fazê-lo tremer em seu retiro sagrado.

Este sentimento e este respeito profundo pela responsabilidade do livreiro, não é ao mesmo tempo um elogio por sua vida dignamente cumprida, e um exemplo para alguns de seus confrades! Esta face calma e plácida, na qual observava ainda ontem a religiosa tranquilidade, fala alto do fundo desta tumba, e falará muito tempo ainda pelas obras literárias que acolheu ou inspirou.

Pierre-Paula-Didier tinha a idade do século; nascido em Paris em 1800, tornou-se em 1827 comprador do fundo do morgado Béchet, que incluía certas notabilidades políticas do tempo; teve, em 1828, a ideia de publicar, por lições, os Cursos dos Srs. Villemain, Guizot e Cousin. Estes cursos, interrompidos durante vários anos, acabavam de ser dados a um público entusiasta e simpático, e o seu sucesso em lições impressas foi  notável. Os estenógrafos reunidos tinham por sua vez a intenção de fazer a mesma publicação, e não foi sem sacrifícios pecuniários que o Sr. Didier pôde realizar o seu projeto, primeira base da Livraria Acadêmica que ele fundou e que contém, pode-se dizê-lo as melhores obras da literatura contemporânea.  Em 1830, como em 1848, Didier deveu ter passado por vicissitudes políticas e por outras que não o abateram; poderia enriquecer-se por manobras mais ou menos fáceis de justificar, mas conservou a integridade de seu caráter e mostrou o que pode uma lealdade firme e princípios que nunca o abandonaram. Ao mesmo tempo em que sua coleção renomeada de “educação moral”, publicou obras célebres da história, da literatura e da filosofia e evitou, escrupulosamente, de auxiliar o mau gosto; ante a fortuna preferiu o título editor probo e consciencioso, e pode-se dizer que contribuiu para o desenvolvimento salutar da literatura elevada.

Seja qual for o sentimento do qual eu pareça inspirado aqui, senhores, diante da tumba de um velho amigo, não quero fazer uma apoteose. Tenho notado que, muito frequentemente, a morte se assemelha a uma lente de ótica, que aumenta as qualidades e dissimula os defeitos da pessoa falecida. Não quero dizer que o Sr. Didier tenha sido um homem ilustre, um sábio ou um filósofo. Não, era um negociante, de instrução modesta, mas cuja apreciação era tão inteligente, cuja aptidão para compreender tão certa, cuja imaginação tão clarividente e cuja alma tão honesta, que se elevara a si mesmo, e elevara a sua obra a um escalão digno dos mais cultos espíritos. Sob o último reinado, foi verdadeiramente, como livreiro, um dos representantes mais consideráveis do movimento intelectual; e quando a revolução de 1818 eclodiu, estava em seu gabinete quando todos os ministros reuniram as suas obras literárias. A livraria que consta entre os seus nomes Guizot, Cousin, Barante, os Villemain, Résumet, Miguel, Sacy, Broglie, Ampère, etc..., essa Livraria Acadêmica, como foi alcunhada, fez honra ao operário que a fundou e estabeleceu ....

Disse que a ideia espiritualista dominava nele. Sim, recordar-me-ei por muito tempo dessas horas de intimidade nas quais esquecido de sua idade submetia-me as suas dúvidas e as suas esperanças sobre a vida futura. Ele era grande, às vezes, nas suas elevações para o Deus pessoal, nas suas indignações contra os adoradores da matéria.

Algumas vezes à tarde, depois do meio-dia, quando tomava o meu braço para um passeio solitário ou para assistir aos concertos que amávamos, falava-me desses outros mundos que a noite nos revela e que as asas da alma podem alcançar: o seu pensamento deixava o seu envoltório já frágil; e se perguntava quais são esses gozos ideais cujas impressões terrestres não parecem senão uma fraca imagem; esperava uma vida superior, livre dessas necessidades grosseiras que pesam sobre a nossa existência; e os lábios desse livreiro exprimiam pensamentos que muitos sábios, que muitos astrônomos nunca sentiram!

Agora ei-lo deitado nessa fossa: Mas esta não é toda a sua pessoa que jaz aos nossos pés: é o envoltório corruptível, é o habitáculo transitório de uma alma imortal. Ainda há alguns dias ele ignorava; ainda há alguns dias ele se acreditava tão longe da morte como nunca; hoje, ele contempla, sem dúvida, na sua realidade explicada, os arcanos do mundo espiritual; é mais feliz que nós, entregues, ainda, à incerteza sobre a realidade desses mistérios, diante dos quais a nossa vida corre indiferente, ainda que eles sejam o ponto capital da criação e o termo em que devemos todos terminar.

Ainda nesses últimos dias, conversávamos rindo, quarta-feira última, deixara-o , lamentando, para uma curta estada em Compiègne, e hoje mesmo, no momento em que falo, devíamos almoçar juntos! Sábado à tarde, ele sai de sua casa para encontrar em uma sessão na qual devíamos igualmente nos entreter hoje. A alguns passos da sua casa, ele sentou-se para esperar uma viatura, e morreu subitamente. Transeuntes o reconhecem e o transportam para a sua família lacrimosa....

Morto subitamente! Sem sofrimento aparente, sem que a menor contração fosse pintada na sua face ou nos seus membros: morto sonhando com as pequenas preocupações da vida, no meio de muitos projetos e de algum modo em plena saúde! Morto, como um pêndulo que se detém por um grão de areia ou pelo deslocamento de uma mola! Uma tal morte é muito eloquente, senhores, e bem capaz de nos tirar da nossa indiferença pelo mundo espiritual. Diante desse quadro, diante desse corpo vivo, repentinamente, privado da existência, diante desse cadáver que conserva todos os aspectos da vida física, não parece que essa vida é inferior à do Espírito? É que essa alma, que, dois minutos antes se manifestava ainda, em toda a sua força e em toda a sua virilidade, pôde se extinguir pelo desarranjo do organismo que interrompe a vida do corpo? É que, nos nossos princípios de justiça e nas nossas aspirações inatas, não se junta aqui a aparição de um fato novo: a indestrutibilidade da força espiritual? É que poderíamos estar satisfeitos com uma explicação que se contentassem dizer que é natural que esta alma se extinguisse subitamente, e que pela razão de que um órgão se destrua no envoltório corporal , o Espírito não possa sobreviver e se aniquile?

Não, Senhores. Levemos os nossos olhos mais alto. O teu corpo está na terra, ó meu amigo, os batimentos do teu coração cessaram ...  os teus olhos perderam a sua luz... e a tua alma mão não apertará mais a nossa... O coveiro vai nos roubar os teus últimos restos... a terra do cemitério, fria e úmida, vai te recobrir, e o vento gemerá tristemente nessas noites de inverno através do despojo descarnado dos arvoredos . Mas na próxima primavera uma nova vida reverdecerá nessas árvores. Na tua morada ultra-terrestre, ó alma, um som mais belo que o nosso iluminará os teus passos; a nossa terra é, apenas, uma passagem, apenas um átomo (frequentemente,  o dizíamos!):  o teu corpo nada era. Mas é uma morada em que os carvalhos não secam, em que as rosas não envelhecem, e que o sorriso eterno de uma primavera luminosa resplandece e nos atrai para um progresso sem fim: é a terra dos Espíritos, aquela em que acabas de elevar-te, aquela em que se exercem os juízos absolutos do Eterno¹.

CAMILLE FLAMMARION

NOTA

  1. Esse discurso notável causou uma viva emoção em todos aqueles que o ouviram. Acreditamos ser agradável aos nossos leitores publicando-o em L’Avenir. Aproveitamos esta circunstância para anunciar aos nossos amigos que o Sr. Camille Flammarion acaba de ser chamado para a reação científica do jornal Le Siècle. Alis DÁmbel, editor.


Texto publicado originalmente no periódico francês L’Avenir , em Paris, em 18 de janeiro de 1866. Tradução de José Antônio Carvalho, Vitória ES.

Nenhum comentário:

Postar um comentário