Senhores,
Os parentes e amigos
daquele cujo despojo mortal jaz agora aos nossos pés, me pediram
para concluir esta dolorosa cerimônia com algumas palavras. Não me
sentiria autorizado a aceitar este convite, se não soubesse que vem
do fundo do coração e se, desde alguns anos , não fosse objeto de
uma afeição especial da parte deste homem respeitável. Por
uma coincidência que me entristece, tanto quanto me impressiona, meu
nome foi uma das últimas palavras que saíram de seus lábios; sendo
o mais jovem dos autores cujas obras ele publicou, imagino que essa
juventude fosse um dos motivos dessas simpatias, e é, sobretudo, a
esse título, que pronuncio o adeus que todos lhe dão hoje.
Antes que a terra se
feche para sempre sobre aquele que uma mão misteriosa acaba, de
repente, de banir do banquete da vida, vou, pois, intérprete dos
sentimentos de todos, deixar cair sobre essa cabeça adormecida um
testemunho de estima, partilhado por todos aqueles que o conheceram
disso estou certo.
Não falarei aqui do
homem privado. Meu único dever e meu único direito, é mostrar aos
primeiros escalões do comércio livreiro contemporâneo um editor
íntegro, honrado, religioso mesmo, colocando acima de todo o
interesse o sentimento do bem, do belo e do verdadeiro; desprezando
as riquezas cuja origem é duvidosa, preferindo às publicações
escandalosas as obras que enriquecem que instruem o espírito e
enobrecem o coração; - um editor, finalmente, que nunca aceitou um
livro materialista, desonesto ou perigoso, por mais produtivo que
tivesse sido em outra parte; que desejou, constantemente sentir sob
essas obras o sentido espiritualista que as enobrece; e que desde
quarenta anos que se dedicou a esta tarefa, não imprimiu uma única
obra que lhe pudesse hoje censurar à sua consciência, e que uma mão
ultrajante pudesse lançar sobre esse ataúde para fazê-lo tremer em
seu retiro sagrado.
Este sentimento e este
respeito profundo pela responsabilidade do livreiro, não é ao mesmo
tempo um elogio por sua vida dignamente cumprida, e um exemplo para
alguns de seus confrades! Esta face calma e plácida, na qual
observava ainda ontem a religiosa tranquilidade, fala alto do fundo
desta tumba, e falará muito tempo ainda pelas obras literárias que
acolheu ou inspirou.
Pierre-Paula-Didier tinha
a idade do século; nascido em Paris em 1800, tornou-se em 1827
comprador do fundo do morgado Béchet, que incluía certas
notabilidades políticas do tempo; teve, em 1828, a ideia de
publicar, por lições, os Cursos dos Srs. Villemain, Guizot e
Cousin. Estes cursos, interrompidos durante vários anos, acabavam de
ser dados a um público entusiasta e simpático, e o seu sucesso em
lições impressas foi notável. Os estenógrafos reunidos
tinham por sua vez a intenção de fazer a mesma publicação, e não
foi sem sacrifícios pecuniários que o Sr. Didier pôde realizar o
seu projeto, primeira base da Livraria Acadêmica que ele fundou e
que contém, pode-se dizê-lo as melhores obras da literatura
contemporânea. Em 1830, como em 1848, Didier deveu ter passado
por vicissitudes políticas e por outras que não o abateram; poderia
enriquecer-se por manobras mais ou menos fáceis de justificar, mas
conservou a integridade de seu caráter e mostrou o que pode uma
lealdade firme e princípios que nunca o abandonaram. Ao mesmo tempo
em que sua coleção renomeada de “educação moral”, publicou
obras célebres da história, da literatura e da filosofia e evitou,
escrupulosamente, de auxiliar o mau gosto; ante a fortuna preferiu o
título editor probo e consciencioso, e pode-se dizer que contribuiu
para o desenvolvimento salutar da literatura elevada.
Seja qual for o
sentimento do qual eu pareça inspirado aqui, senhores, diante da
tumba de um velho amigo, não quero fazer uma apoteose. Tenho notado
que, muito frequentemente, a morte se assemelha a uma lente de ótica,
que aumenta as qualidades e dissimula os defeitos da pessoa falecida.
Não quero dizer que o Sr. Didier tenha sido um homem ilustre, um
sábio ou um filósofo. Não, era um negociante, de instrução
modesta, mas cuja apreciação era tão inteligente, cuja aptidão
para compreender tão certa, cuja imaginação tão clarividente e
cuja alma tão honesta, que se elevara a si mesmo, e elevara a sua
obra a um escalão digno dos mais cultos espíritos. Sob o último
reinado, foi verdadeiramente, como livreiro, um dos representantes
mais consideráveis do movimento intelectual; e quando a revolução
de 1818 eclodiu, estava em seu gabinete quando todos os ministros
reuniram as suas obras literárias. A livraria que consta entre os
seus nomes Guizot, Cousin, Barante, os Villemain, Résumet, Miguel,
Sacy, Broglie, Ampère, etc..., essa Livraria Acadêmica, como foi
alcunhada, fez honra ao operário que a fundou e estabeleceu ....
Disse que a ideia
espiritualista dominava nele. Sim, recordar-me-ei por muito tempo
dessas horas de intimidade nas quais esquecido de sua idade
submetia-me as suas dúvidas e as suas esperanças sobre a vida
futura. Ele era grande, às vezes, nas suas elevações para o Deus
pessoal, nas suas indignações contra os adoradores da matéria.
Algumas vezes à tarde,
depois do meio-dia, quando tomava o meu braço para um passeio
solitário ou para assistir aos concertos que amávamos, falava-me
desses outros mundos que a noite nos revela e que as asas da alma
podem alcançar: o seu pensamento deixava o seu envoltório já
frágil; e se perguntava quais são esses gozos ideais cujas
impressões terrestres não parecem senão uma fraca imagem; esperava
uma vida superior, livre dessas necessidades grosseiras que pesam
sobre a nossa existência; e os lábios desse livreiro exprimiam
pensamentos que muitos sábios, que muitos astrônomos nunca
sentiram!
Agora ei-lo deitado nessa
fossa: Mas esta não é toda a sua pessoa que jaz aos nossos pés: é
o envoltório corruptível, é o habitáculo transitório de uma alma
imortal. Ainda há alguns dias ele ignorava; ainda há alguns dias
ele se acreditava tão longe da morte como nunca; hoje, ele
contempla, sem dúvida, na sua realidade explicada, os arcanos do
mundo espiritual; é mais feliz que nós, entregues, ainda, à
incerteza sobre a realidade desses mistérios, diante dos quais a
nossa vida corre indiferente, ainda que eles sejam o ponto capital da
criação e o termo em que devemos todos terminar.
Ainda nesses últimos
dias, conversávamos rindo, quarta-feira última, deixara-o ,
lamentando, para uma curta estada em Compiègne, e hoje mesmo, no
momento em que falo, devíamos almoçar juntos! Sábado à tarde, ele
sai de sua casa para encontrar em uma sessão na qual devíamos
igualmente nos entreter hoje. A alguns passos da sua casa, ele
sentou-se para esperar uma viatura, e morreu subitamente. Transeuntes
o reconhecem e o transportam para a sua família lacrimosa....
Morto subitamente! Sem
sofrimento aparente, sem que a menor contração fosse pintada na sua
face ou nos seus membros: morto sonhando com as pequenas preocupações
da vida, no meio de muitos projetos e de algum modo em plena saúde!
Morto, como um pêndulo que se detém por um grão de areia ou pelo
deslocamento de uma mola! Uma tal morte é muito eloquente, senhores,
e bem capaz de nos tirar da nossa indiferença pelo mundo espiritual.
Diante desse quadro, diante desse corpo vivo, repentinamente, privado
da existência, diante desse cadáver que conserva todos os aspectos
da vida física, não parece que essa vida é inferior à do
Espírito? É que essa alma, que, dois minutos antes se manifestava
ainda, em toda a sua força e em toda a sua virilidade, pôde se
extinguir pelo desarranjo do organismo que interrompe a vida do
corpo? É que, nos nossos princípios de justiça e nas nossas
aspirações inatas, não se junta aqui a aparição de um fato novo:
a indestrutibilidade da força espiritual? É que poderíamos estar
satisfeitos com uma explicação que se contentassem dizer que é
natural que esta alma se extinguisse subitamente, e que pela razão
de que um órgão se destrua no envoltório corporal , o Espírito
não possa sobreviver e se aniquile?
Não, Senhores. Levemos
os nossos olhos mais alto. O teu corpo está na terra, ó meu amigo,
os batimentos do teu coração cessaram ... os teus olhos
perderam a sua luz... e a tua alma mão não apertará mais a
nossa... O coveiro vai nos roubar os teus últimos restos... a terra
do cemitério, fria e úmida, vai te recobrir, e o vento gemerá
tristemente nessas noites de inverno através do despojo descarnado
dos arvoredos . Mas na próxima primavera uma nova vida reverdecerá
nessas árvores. Na tua morada ultra-terrestre, ó alma, um som mais
belo que o nosso iluminará os teus passos; a nossa terra é, apenas,
uma passagem, apenas um átomo (frequentemente, o dizíamos!):
o teu corpo nada era. Mas é uma morada em que os carvalhos não
secam, em que as rosas não envelhecem, e que o sorriso eterno de uma
primavera luminosa resplandece e nos atrai para um progresso sem fim:
é a terra dos Espíritos, aquela em que acabas de elevar-te, aquela
em que se exercem os juízos absolutos do Eterno¹.
CAMILLE FLAMMARION
NOTA
- Esse discurso notável causou uma viva emoção em todos aqueles que o ouviram. Acreditamos ser agradável aos nossos leitores publicando-o em L’Avenir. Aproveitamos esta circunstância para anunciar aos nossos amigos que o Sr. Camille Flammarion acaba de ser chamado para a reação científica do jornal Le Siècle. Alis DÁmbel, editor.
Texto publicado
originalmente no periódico francês L’Avenir , em
Paris, em 18 de janeiro de 1866. Tradução de José Antônio
Carvalho, Vitória ES.
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