Páginas

quarta-feira, 17 de julho de 2013

O ESPIRITISMO À LUZ DA RAZÃO


CONTROVÉRSIA


É com prazer que reproduzimos o seguinte artigo publicado no jornal El Universal, de Madrid, referente à polêmica, que vários periódicos da corte anunciaram, entre o presidente da Sociedade Espiritista Espanhola e  o Padre Sánchez.


O artigo indicado teve publicidade também no jornal La Igualdad, ao qual o enviou nosso irmão Torres Solanot, como contestação a um suelto que se pode qualificar como bastante incoveniente: e houve sem dúvida de compreendê-lo assim o Diretor desta última publicação, quando ao enviá-lo para a estampa o precede de um preâmbulo que anula quase totalmente o que foi  dito pelo autor do suelto, e além disso também o faz ao transcrever nas colunas do mesmo periódico um outro artigo, também de contestação ao mencionado suelto, de autoria do nosso irmão e colaborador J. Navarrete que reproduziremos no próximo número por estarmos impedidos neste devido ao excesso de material.
CIÊNCIAS E LITERATURA


Teve início entre o senhor visconde de Torres Solanot e o ilustre sacerdote católico D.Miguel Sánchez uma polêmica acerca do espiritismo, que promete ser tão animada quanto curiosa.



Considerando o interesse de nossos leitores, e desejosos de contribuir para o esclarecimento de todas as questões científicas, concedemos este espaço de nosso periódico a um dos contendentes que de forma cortês o solicitou para seus escritos.

Ao que poderia ser conveniente a ambos, oferecemos também ao Padre Sánchez as colunas de EL UNIVERSAL, esperando que nossas notórias opiniões em matéria religiosa não serão um empecilho a aceitação desta oferta, que com a melhor das intenções faremos, para que as doutrinas sustentadas durante o duelo científico não cheguem ao público desfiguradas ou obscurecidas por brevíssimos extratos, e para a garantia de imparcialidade aos juízes da disputa.


Dito isto, nos falta apenas advertir que somos completamente alheios à polêmica: oferecemos este espaço, porém reservamos nossa opinião.




O ESPIRITISMO À LUZ DA RAZÃO
Desafio ao Padre Sánchez


Há poucos anos que na América começaram a chamar a atenção alguns fenômenos análogos aos que são descritos em todos os povos; fenômenos que constituem a história de um fato continuamente reproduzido, com uma ou outra propriedade, porém ainda não submetido à observação e ao raciocínio, jamais subordinado a investigação, análise e a crítica, aos processos que dão lugar à ciência.
Visconde de Torres Solanot

Os fenômenos a que nos referimos, denominados vulgarmente das mesas girantes e dos espíritos batedores, invadiram, pouco depois, os principais povos da Europa, despertando sentimentos bem opostos: admiração em uns, repulsa em outros, fervente fé em alguns e desprezo na maioria dos homens que ouviram sobre o que foi logo chamado de Espiritismo, e que no conceito geral era uma nova loucura, uma nova manifestação dos extravios do entendimento humano. Essa loucura, entretanto, foi sucessivamente radicando-se entre os povos mais cultos de ambos continentes; criou sociedades e círculos de experimentação e estudo, fundou periódicos, publicou livros, e chegou a fundar uma numerosíssima falange de adeptos, abrigados nos centros de maior movimento intelectual e entre as classes ilustres da sociedade.

Hoje essa falange – que compõe os espíritas – já apresenta orgulhosa uma doutrina, uma grande e transcendental aspiração; começa a ensaiar uma filosofia; logo desenvolverá uma ciência, ou melhor dizendo, um auxiliar das ciências. Esses fenômenos, aparentemente, uma das muitas pequenas causas que levam aos efeitos mais extraordinários, encerravam o gérmen de um estudo necessário e como tal fecundo e proveitoso: o estudo do espírito e da matéria, para chegar, através da investigação experimental e racional, até a síntese de ambos, fundindo os sistemas opostos no sincretismo que vem a determinar uma nova fase da ciência, anunciada pela filosofia espiritista.

Laboriosa é a obra; o resultado alcança ao infinito. Assim que comece o Espiritismo por reconhecer o progresso ilimitado. Admitindo esse princípio fundamental, e muitos dos quais esta escola filosófica formulou e abstraiu, está, contudo, isento de cair no panteísmo atribuído a Saint Simon, Lerroux, Fourrier, Owen e demais partidários do progresso indefinido, porque considera a Deus como o Ser que é, diante de tudo, sobre tudo e fora de tudo: infinitamente infinito, absolutamente absoluto.

Deste conceito do Ser que é sendo e querendo cria, pode o Espiritismo deduzir sua teoria da criação, que o leva a admitir, junto aos últimos descobrimentos da ciência astronômica, a pluralidade dos mundos,um princípio que se vislumbra, como concepção puramente ideal, em alguma teogonias e filosofias da antiguidade, e que em 1640 a expunha um dos notórios precursosres de nossas doutrinas: Cyrano de Bergerac, contra a pessoa e as respectivas obras, que só nos chegaram mutiladas, se levantou a estúpida intolerância religiosa.

E como consequência dessa teoria, e servindo-se e apoiando-se nas ciências, o Espiritismo se abre a estes novos horizontes,  levando-as desde então a retificar algumas de suas apreciações e mostrando-as o caminho da ciência única.

Mas onde abre um vasto campo às investigações e fornece pontos de partida para estudos subsequentes, é nas esferas dos desenvolvimentos espirituais, do conhecimento dos seres, espíritos encarnados ou desencarnados. "Estes seres são, diz o Espiritismo, com relação a Deus porque Ele é, e são por serem criaturas; mas como participam da essência divina, são também da mesma forma absolutos, ainda que relativamente. Eles são individuais, são relativamente livres para a sua participação na essência... Seres que serão mais pessoais e terão mais liberdade à medida que se aproximarem de Deus, que cria seres a partir da mesma essência, e assim como são criados de uma única essência, os cria a todos do mesmo modo. Logo todos os seres são inicial e essencialmente iguais - Todos os seres são perfectíveis - A alma estará cada vez mais próxima da perfeição, sem nunca ser perfeita. Continuamente irá se aproximando de Deus, sem nunca confundir-se com Ele". (Noción del Espiritismo, por un Médium.)


Considerada assim a imortalidade da alma, o Espiritismo ensina a caminhar até Deus pela ciência e pela virtude, e, conforme com a razão e com todas as tradições religiosas, resume as tentativas modernas que tem por objeto provar a grande fato dos destinos psíquicos, a pluralidade de existências, princípio que ostenta em sua bandeira.


E, por último, do estudo dos fundamentos que ratificamos , deduz-se a solidariedade universal, que implica na comunhão dos seres, e como consequência lógica a comunicação, o fato de todos os tempos, porém não devidamente analisado e estudado até a segunda metade de nosso século, graças aos fenômenos que começaram a chamar a atenção nos Estados Unidos da América.


Assim, o que se induz a priori, hoje, depois de estudar o Espiritismo, se deduz a posteriori. Se a base de indução pode um tempo rechaçar-se racionalmente, na atualidade é ilógico depreciá-la . Nossa filosofia partiu de um ponto, e volta ao mesmo ponto mediante outros pontos, isto é, com o sistema da ciência. Vivendo na ideia, realizou um corpo de ideias pelo método científico. 


Os fenômenos das mesas girantes e dos espíritos batedores, que representaram a maçã de Newton, a marmita de Papin e a rã de Galvani, deram lugar a uma série de comunicações dos espíritos desencarnados com os encarnados, despertando nestes o desejo de reduzi-la a um corpo de doutrina, filosofia espiritista, que de dia a dia sai de um estado embrionário para entrar em seu estado adulto, indicando, como antes dissemos, uma nova fase no desenvolvimento dos progressos do entendimento humano.

Por isso o espiritismo demonstra (na esfera desta vida planetária), que apesar da opinião dos filósofos cristãos, a filosofia não é impotente para dirigir ao gênero humano, quando esta pode se reduzir a duas palavras: saber e amar. Tal é a síntese do Espiritismo. “Sua missão é fazer o homem avançar muitos passos em sua carreira; é trazer para ele o que deveria buscar; é demonstrar-lhe a realidade de seu destino futuro e a felicidade desse destino; é mostrar-lhe esse destino final de sua carreira como um ponto a que se deve chegar infalivelmente, e que dele depende acelerar ou retardar o momento; é demonstrar a misericórdia e o amor de Deus a criatura; é despojar seu leito de morte das horríveis imagens da incerteza. Quando a ideia espiritista alcançar sua perfeição, os homens serão irmãos e se reunirão para adorar a Deus em seus corações.” (La fórmula del Espiritismo, por Alverico Peron.)

A partir daí que o Espiritismo, em suas consequências para o planeta terrestre, represente um ideal de progresso, e seja um fator de avanço na ordem material, na ordem social e na moral e religioso.

Ligeiríssimo e imperfeito é o esboço que traçamos, porém demonstra que o Espiritismo pode e deve ser examinada à luz da razão, e que seu estudo é sério e transcendente. E o é, em verdade; por isso lhe destacamos o caráter de providencial.

Um profundo pensador escrevia há trinta anos: “Se a marcha dos destinos é providencial, se das maiores tempestades que ela apresenta devem sair providencialmente as maiores metamorfoses, bem pronto inovações transcendentais refutaram vitoriosamente as recriminações de importância deste século, que tem, não apenas a missão, senão a obrigação de fortificar a ordem de ideias e de estudos (os morais) que está mais debilitada.

Essas invocações transcendentes, dizíamos em outra ocasião, - que o filósofo moralista pressentia doze anos antes que se manifestassem os primeiros fenômenos que chamaram a atenção sobre o estudo do Espiritismo, estamos já a poto de tocá-las: a semente começou a expandir-se, está germinando e não tardará a frutificar. Os graus do progresso daquele estudo  marcaram seu desenvolvimento , porque “o espírito que se agita na terra, quer recobrar seu belo ideal, sua pátria e sua lei: seu belo ideal é Deus, sua pátria é o espaço, sua lei a liberdade. Tal é o ensinamento espiritista. Ele nos disse também:

O mundo já sabe que não está só nem isolado no mar da imensidão: cresce, e o espaço lhe abraça melhor; sai do reduzido e sombrio horizonte de suas aspirações e entra na infinita justiça, verdade e beleza de onde os mundos não são mais que lugares de combate com a matéria para sobrepor-se a ela.

O mundo já sabe que sua inteligência limitada pode adquirir viveza pelo sopro de uma inteligência livre, porque os pensamentos dos seres habitantes da eternidade cruzam por ela com seus raios infinitos, enchendo-lhes de atividade como sóis de luz.

“A inteligência se comunica eternamente com a inteligência, o universo está habitado até os últimos limites de seus centros infinitos, e a vida verdadeira não é mais que uma série jamais interrompida de novas vidas.” (Espírito de Pitt)

Tal é a ideia que o estudo dá do Espiritismo. Somente a ignorância pode qualificá-la de “embuste” e de “tolice”. Mesmo que o rotulem de utopia, é bom lembrar que “as utopias de hoje são as verdades de amanhã”.

Essa é a ideia que acreditamos rebater o ilustre P. Sánchez quando nos disse que desde a cátedra do Ateneo se ocupava do Espiritismo, e assistimos a sua conferência de 24 de fevereiro. Nada disso o orador católico dizia, no momento em que entrávamos no salão, que o Espiritismo veio prostituir o espírito, ridicularizá-lo e preparar o materialismo.

Miguel Sánchez López (1833-1889)


Ansiosos esperávamos a demonstração dessas proposições; porem nossa ansiedade durou pouco. Para provar sua tese o P. Sánchez  reduziu o espiritismo a alguns textos de Allan Kardec, autor da primeira compilação um tanto metódica de contestações e dissertações dos Espíritos. Assim foi que desde logo um Espiritista que se encontrava ao nosso lado, exclamou: “ O P. Sánchez não sabe o que diz, ou não diz o que sabe.” A pessoa aludida o havia visto em uma sessão da Sociedade Espiritista Espanhola, a la sazon que esta se ocupava em revisar e corrigir um livro de Allan Kardec , havendo começado também a revisão do livro de onde nosso impugnador tomava os textos; textos cujos o sentido e completamente oposto ao sentido que lhes dava, apresentando diante do publico uma doutrina que não é a Espiritista e nem sequer se desprende do Livros dos Médiuns, a que antes nos referíamos.

As perguntas, dizia entre outras coisas o P. Sánchez  hão de fazer-se de uma maneira muita clara, muita precisa, com certo método e encadeamento. Deste modo supunha que lhes era fácil contestar aos médiuns, e exclamava ( palavras textuais): “ Compreendes como se organiza a trapaça!”. Não podemos reconhecer  essa frase como ofensiva (1) para nós, embora a rechaçamos , a quem quer que seja dirigida.

Nos Livros dos Médiuns, segundo a edição francesa, pagina 386, Allan Kardec se ocupa das perguntas que se pode dirigir aos  espíritos. Considera nela a forma e o fundo: sobre a primeira disse que disse que devem ser redigidas (rédigées) com clareza e precisão evitando pergunta complexas. Aconselha depois que se procure ordena-las  com certo método. Aquele livro que,  como ele mesmo afirmou, não é um formulário universal e infalível, contendo nesse ponto as regras que a experiência  demonstrara  serem  mais proveitosas para os estudos Espiritistas, entre cujas as regras se indicam as que citamos. Isto não impede que, por desgraça, se esqueçam de muitas, nem impeça tampouco para que cada círculo ou sociedade de estudos adote neste ponto o método especial que a experiência  aconselhe.  Este é o fato. Isto é o que se observa na Sociedade Espiritista Espanhola o P. Sanchez.

Não nos propomos ir refutando todo seu discurso; se nesse ponto apreendemos  algo, se deve ao que donde o encontramos  menos desconhecedor do Espiritismo. Como prova disto basta dizer que o acusa porque não prediz nem profetiza, porque não serve para o avanço da ciência, nem para as consultas médicas, nem para encontrar tesouros, pontos dos quais o orado se ocupa, confundindo lastimavelmente o sério e o racional com o ridículo e o ilógico.

Merecem,  todavia, especial menção algumas frases que tomamos ad pedem literae, e são a melhor prova de que o P. Sánchez desconhece completamente o Espiritismo ou o mistifica.

“O Espiritismo se gaba, dizia, de ter descoberto os mundos pela revelação dos Espíritos.” De onde aprendeu esse erro o padra Sánchez? Leiam os escritores espíritas Andrés Pezzani e Camille Flammarion, e estes lhe darão a conhecer os filósofos  que tem exposto suas teorias sobre a pluralidade de mundos, séculos antes de que Espiritismo se cultivasse como filosofia, se conhecesse como ciência.

“É um cânone da ciência espiritista...”


“Onde estão esses cânones? Quem lhes ensinou a parte canônica do Espiritismo ao padre Sánchez? Crê que nossa filosofia se assemelha ao Catolicismo fechando as portas à razão, estabelecendo dogmas e cânones que retrocederão sempre ante a investigadora inteligência?

Falou também dos doutores do Espiritismo. Afortunadamente não tem doutores nem padres que sirvam a perpetuação do erro, impondo autoridade com seu simples provérbios, para que suas autorizadas palavras, quase-dogma, tornem-se chacota para as gerações futuras, como certos padres da Igreja que não admitiam a infinidade do espaço, a esfericidade da Terra, a existência dos antípodas, etc. (Lactâncio, Santo Agostinho, São João Crisóstomo, citados por C. Flammarion na sua obra Contemplations Scientifiques, pág. 297.)

Para quê seguir mais? Para quê tornar patente a ignorância que se supõe daquele que traz entre as mãos quem se ocupa, na forma que o P. Sánchez o fazia, da telegrafia humana? Para quê refutar que o Espiritismo está reduzido à política e a moral; que os espiritistas dividem geralmente suas obras em duas partes, uma que se ocupa da política e outra da moral? Para quê fazer menção dos erros em que incorreu ao falar da caridade sob o ponto de vista espiritista? Deveremos tomar ata de conceitos tão errôneos e caluniosos como o seguinte: “O Espiritismo no fundo não é mais nem menos que a Internacional” entre outros absurdos.

Não, porque o leitor imparcial poderia devolver ao orador do Ateneo aquela frase que escutamos com um sorriso nos lábios: “Ao ouvir tais coisas não podemos deixar de sentir indignação.” Inclusive deveria o P. Sánchez esforçar mais seus argumentos, dizendo que o Espiritismo era uma “escandalosa trapaça,” e que, nada poderia estuda-lo. (Já se vê! Como hoje é impossível impedi-lo com a masmorra e a fogueira!).


Talvez não lhe faltasse razão para aquelas infundadas exclamações, se o Espiritismo fosse a caricatura apresentada na conferência do dia 24, se o Espiritismo estivesse reduzido ao estreito conceito  de que o parece haver formado o P. Sánchez. Rechaçamos com toda a energia que presta a convicção, esse conceito equivocado, e desafiamos o expositor que nos demonstre  que os princípios acima apresentados, não são o fundamento sobre o qual se apoia a ciência espiritista, e que examinada à luz da razão oferece sólida base para fundar convicção filosófica e religiosa; por isso o Espiritismo se não é o acontecimento espiritual, previsto  e esperado, como crêem  a maior parte dos espiritistas, será pelo menos a preparação.

Conhecida nos é a ilustração do P. Sánchez; conhecidas nos são seus dotes especiais na polêmica, pelo qual não nos teríamos atrevido talvez a desafiá-lo nesta arena, se não contássemos  com que, esclarecida a questão, encontramos o adversário no terreno mais desvantajoso, que nos buscará ocasião, somente expondo nossa doutrina, de mostrar um novo “triunfo da ideia que vem sobre a ideia que se vai,” que é o que, em suma, representa o Espiritismo.


TORRES-SOLANOT.

(1) Carta dirigida ao Padre Sánchez: Caro senhor: Constestando desde a cátedra do Ateneo algumas ideias contidas em um livro do espiritista Allan Kardec, tendes pretendido combater o Espiritismo, ao que vos permitistes qualificar de « fraude escandalosa.» Ou não sabias o que dizias, ou não dizias o que sabias.—Presidente de uma Sociedade consagrada há alguns anos ao estudo da ciência espiritista, cumpro uma obrigação vos convidando, em nome da mesma, para uma discussão pública, e cumpro um dever ao convocarvos, de minha parte, para debater através da imprensa. A Sociedade Espiritista Espanhola, cujas «fraudes escandalosas» vos dignastes a assistí-las, espera que aceiteis seu convite; não duvido que rejeitareis meu desafio.

Texto publicado no periódico espanhol El Espiritismo, em Sevilha, Espanha, em 1º de abril de 1872, como republicação de um artigo originalmente impresso no Jornal El Universal, diário de Madrid, Espanha. Tradução de Herivelto Carvalho, Ibatiba ES.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

PALAVRAS PRONUNCIADAS SOBRE A TUMBA DE P. P. DIDIER No dia 8 de dezembro de 1865

Senhores,

Os parentes e amigos daquele cujo despojo mortal jaz agora aos nossos pés, me pediram para concluir esta dolorosa cerimônia com algumas palavras. Não me sentiria autorizado a aceitar este convite, se não soubesse que vem do fundo do coração e se, desde alguns anos , não fosse objeto de uma afeição especial da parte deste homem respeitável.  Por uma coincidência que me entristece, tanto quanto me impressiona, meu nome foi uma das últimas palavras que saíram de seus lábios; sendo o mais jovem dos autores cujas obras ele publicou, imagino que essa juventude fosse um dos motivos dessas simpatias, e é, sobretudo, a esse título, que pronuncio o adeus que todos lhe dão hoje.

Antes que a terra se feche para sempre sobre aquele que uma mão misteriosa acaba, de repente, de banir do banquete da vida, vou, pois, intérprete dos sentimentos de todos, deixar cair sobre essa cabeça adormecida um testemunho de estima, partilhado por todos aqueles que o conheceram disso estou certo.
Não falarei aqui do homem privado. Meu único dever e meu único direito, é mostrar aos primeiros escalões do comércio livreiro contemporâneo um editor íntegro, honrado, religioso mesmo, colocando acima de todo o interesse o sentimento do bem, do belo e do verdadeiro; desprezando as riquezas cuja origem é duvidosa, preferindo às publicações escandalosas as obras que enriquecem que instruem o espírito e enobrecem o coração; - um editor, finalmente, que nunca aceitou um livro materialista, desonesto ou perigoso, por mais produtivo que tivesse sido em outra parte; que desejou, constantemente sentir sob essas obras o sentido espiritualista que as enobrece; e que desde quarenta anos que se dedicou a esta tarefa, não imprimiu uma única obra que lhe pudesse hoje censurar à sua consciência, e que uma mão ultrajante pudesse lançar sobre esse ataúde para fazê-lo tremer em seu retiro sagrado.

Este sentimento e este respeito profundo pela responsabilidade do livreiro, não é ao mesmo tempo um elogio por sua vida dignamente cumprida, e um exemplo para alguns de seus confrades! Esta face calma e plácida, na qual observava ainda ontem a religiosa tranquilidade, fala alto do fundo desta tumba, e falará muito tempo ainda pelas obras literárias que acolheu ou inspirou.

Pierre-Paula-Didier tinha a idade do século; nascido em Paris em 1800, tornou-se em 1827 comprador do fundo do morgado Béchet, que incluía certas notabilidades políticas do tempo; teve, em 1828, a ideia de publicar, por lições, os Cursos dos Srs. Villemain, Guizot e Cousin. Estes cursos, interrompidos durante vários anos, acabavam de ser dados a um público entusiasta e simpático, e o seu sucesso em lições impressas foi  notável. Os estenógrafos reunidos tinham por sua vez a intenção de fazer a mesma publicação, e não foi sem sacrifícios pecuniários que o Sr. Didier pôde realizar o seu projeto, primeira base da Livraria Acadêmica que ele fundou e que contém, pode-se dizê-lo as melhores obras da literatura contemporânea.  Em 1830, como em 1848, Didier deveu ter passado por vicissitudes políticas e por outras que não o abateram; poderia enriquecer-se por manobras mais ou menos fáceis de justificar, mas conservou a integridade de seu caráter e mostrou o que pode uma lealdade firme e princípios que nunca o abandonaram. Ao mesmo tempo em que sua coleção renomeada de “educação moral”, publicou obras célebres da história, da literatura e da filosofia e evitou, escrupulosamente, de auxiliar o mau gosto; ante a fortuna preferiu o título editor probo e consciencioso, e pode-se dizer que contribuiu para o desenvolvimento salutar da literatura elevada.

Seja qual for o sentimento do qual eu pareça inspirado aqui, senhores, diante da tumba de um velho amigo, não quero fazer uma apoteose. Tenho notado que, muito frequentemente, a morte se assemelha a uma lente de ótica, que aumenta as qualidades e dissimula os defeitos da pessoa falecida. Não quero dizer que o Sr. Didier tenha sido um homem ilustre, um sábio ou um filósofo. Não, era um negociante, de instrução modesta, mas cuja apreciação era tão inteligente, cuja aptidão para compreender tão certa, cuja imaginação tão clarividente e cuja alma tão honesta, que se elevara a si mesmo, e elevara a sua obra a um escalão digno dos mais cultos espíritos. Sob o último reinado, foi verdadeiramente, como livreiro, um dos representantes mais consideráveis do movimento intelectual; e quando a revolução de 1818 eclodiu, estava em seu gabinete quando todos os ministros reuniram as suas obras literárias. A livraria que consta entre os seus nomes Guizot, Cousin, Barante, os Villemain, Résumet, Miguel, Sacy, Broglie, Ampère, etc..., essa Livraria Acadêmica, como foi alcunhada, fez honra ao operário que a fundou e estabeleceu ....

Disse que a ideia espiritualista dominava nele. Sim, recordar-me-ei por muito tempo dessas horas de intimidade nas quais esquecido de sua idade submetia-me as suas dúvidas e as suas esperanças sobre a vida futura. Ele era grande, às vezes, nas suas elevações para o Deus pessoal, nas suas indignações contra os adoradores da matéria.

Algumas vezes à tarde, depois do meio-dia, quando tomava o meu braço para um passeio solitário ou para assistir aos concertos que amávamos, falava-me desses outros mundos que a noite nos revela e que as asas da alma podem alcançar: o seu pensamento deixava o seu envoltório já frágil; e se perguntava quais são esses gozos ideais cujas impressões terrestres não parecem senão uma fraca imagem; esperava uma vida superior, livre dessas necessidades grosseiras que pesam sobre a nossa existência; e os lábios desse livreiro exprimiam pensamentos que muitos sábios, que muitos astrônomos nunca sentiram!

Agora ei-lo deitado nessa fossa: Mas esta não é toda a sua pessoa que jaz aos nossos pés: é o envoltório corruptível, é o habitáculo transitório de uma alma imortal. Ainda há alguns dias ele ignorava; ainda há alguns dias ele se acreditava tão longe da morte como nunca; hoje, ele contempla, sem dúvida, na sua realidade explicada, os arcanos do mundo espiritual; é mais feliz que nós, entregues, ainda, à incerteza sobre a realidade desses mistérios, diante dos quais a nossa vida corre indiferente, ainda que eles sejam o ponto capital da criação e o termo em que devemos todos terminar.

Ainda nesses últimos dias, conversávamos rindo, quarta-feira última, deixara-o , lamentando, para uma curta estada em Compiègne, e hoje mesmo, no momento em que falo, devíamos almoçar juntos! Sábado à tarde, ele sai de sua casa para encontrar em uma sessão na qual devíamos igualmente nos entreter hoje. A alguns passos da sua casa, ele sentou-se para esperar uma viatura, e morreu subitamente. Transeuntes o reconhecem e o transportam para a sua família lacrimosa....

Morto subitamente! Sem sofrimento aparente, sem que a menor contração fosse pintada na sua face ou nos seus membros: morto sonhando com as pequenas preocupações da vida, no meio de muitos projetos e de algum modo em plena saúde! Morto, como um pêndulo que se detém por um grão de areia ou pelo deslocamento de uma mola! Uma tal morte é muito eloquente, senhores, e bem capaz de nos tirar da nossa indiferença pelo mundo espiritual. Diante desse quadro, diante desse corpo vivo, repentinamente, privado da existência, diante desse cadáver que conserva todos os aspectos da vida física, não parece que essa vida é inferior à do Espírito? É que essa alma, que, dois minutos antes se manifestava ainda, em toda a sua força e em toda a sua virilidade, pôde se extinguir pelo desarranjo do organismo que interrompe a vida do corpo? É que, nos nossos princípios de justiça e nas nossas aspirações inatas, não se junta aqui a aparição de um fato novo: a indestrutibilidade da força espiritual? É que poderíamos estar satisfeitos com uma explicação que se contentassem dizer que é natural que esta alma se extinguisse subitamente, e que pela razão de que um órgão se destrua no envoltório corporal , o Espírito não possa sobreviver e se aniquile?

Não, Senhores. Levemos os nossos olhos mais alto. O teu corpo está na terra, ó meu amigo, os batimentos do teu coração cessaram ...  os teus olhos perderam a sua luz... e a tua alma mão não apertará mais a nossa... O coveiro vai nos roubar os teus últimos restos... a terra do cemitério, fria e úmida, vai te recobrir, e o vento gemerá tristemente nessas noites de inverno através do despojo descarnado dos arvoredos . Mas na próxima primavera uma nova vida reverdecerá nessas árvores. Na tua morada ultra-terrestre, ó alma, um som mais belo que o nosso iluminará os teus passos; a nossa terra é, apenas, uma passagem, apenas um átomo (frequentemente,  o dizíamos!):  o teu corpo nada era. Mas é uma morada em que os carvalhos não secam, em que as rosas não envelhecem, e que o sorriso eterno de uma primavera luminosa resplandece e nos atrai para um progresso sem fim: é a terra dos Espíritos, aquela em que acabas de elevar-te, aquela em que se exercem os juízos absolutos do Eterno¹.

CAMILLE FLAMMARION

NOTA

  1. Esse discurso notável causou uma viva emoção em todos aqueles que o ouviram. Acreditamos ser agradável aos nossos leitores publicando-o em L’Avenir. Aproveitamos esta circunstância para anunciar aos nossos amigos que o Sr. Camille Flammarion acaba de ser chamado para a reação científica do jornal Le Siècle. Alis DÁmbel, editor.


Texto publicado originalmente no periódico francês L’Avenir , em Paris, em 18 de janeiro de 1866. Tradução de José Antônio Carvalho, Vitória ES.